Ignorar a dor física pode ajudar a bater recordes olímpicos. Mas também leva a lesões graves, algumas irreversíveis.
Um colega do New York Times que é triatleta tem uma pergunta: toda a gente diz que é preciso ouvir o corpo, mas ouvir o quê, exactamente? É que não é assim tão evidente.Deena Kastor, recordista norte-americana da maratona, interpreta o conselho de uma forma selectiva. "Correr nem sempre é confortável", assegura. "Lembro-me de correr com muito desconforto e dores." A maratonista acrescenta ainda que também corre quando não lhe apetece. "Há tantos dias em que o despertador toca de manhã e digo a mim mesma que estou demasiado cansada", confessa. "Há dias em que a pessoa está desmotivada, não se sente no seu melhor.""Mas se ignorarmos essas indicações do nosso corpo e se sairmos porta fora para ir correr ou fazer desporto", diz ela, "são esses os dias em que nos sentimos mais orgulhosos".Deena Kastor acredita que o truque de ouvir-se o próprio corpo está em saber o que se consegue aguentar. "Se tivermos uma dor aguda, é melhor ver o que se passa", alerta a maratonista.Mas então ouvir o próprio corpo significa perceber a diferença entre uma dor que assinala uma lesão séria e outra que pode ser ignorada? A ser assim, por que razão atletas como Deena Kastor ficam gravemente lesionados?No ano passado, ela partiu o pé logo no quinto quilómetro da maratona dos Jogos Olímpicos de Pequim. Na mesma corrida, a inglesa Paula Radcliffe, que detém o recorde mundial da maratona feminina, correu abaixo da sua melhor condição física porque o treino de preparação para o Jogos Olímpicos tinha sido interrompido por uma fractura, que atrasou-a vários meses.Talvez o problema seja a dificuldade em perceber o que nos diz o corpo."Ouvir o próprio corpo é sempre uma regra difícil", garante Keith Hanson, treinador que chefia o Hansons-Brooks Distance Project, que recruta corredores de fundo promissores e os apoia no treino a tempo inteiro. Um dos corredores a seu cargo, Brian Sell, esteve nos Jogos de Pequim e os outros participam em competições internacionais."Há várias moinhas e dores que não impedem a corrida", explica Hanson, e outras que exigem um tempo de repouso. "Tento sempre seguir uma regra de ouro: se ao fim de dez minutos de corrida, ainda se coxeia ou se tem uma alteração de passada ou postura, então é uma lesão e não uma simples moinha ou dor." Hanson também garante: "Nunca se deve correr com lesões. Fazê-lo é quase sempre provocar lesões de compensação. O que começou por ser uma dor no tornozelo passa a ser problema no joelho ou na anca."Parar é difícil No entanto, algumas vezes, mesmo que se tenha má impressão sobre uma dor repentina, pode ser difícil parar, especialmente durante uma corrida de competição.Isso aconteceu ao meu amigo Rafael Escandon, investigador de uma pequena empresa de biotecnologia de São Francisco. Foi em 2002, e ele decidiu correr a maratona Twin Cities. Já tinha feito umas quantas dezenas de maratonas, por isso não era propriamente um principiante. Rafael sabia que o truque era continuar a andar durante os percursos em que há desconforto.A corrida começou bem. Escandon tinha treinado, correndo milhas em oito minutos. Contudo, nessa maratona corria a um ritmo muito mais rápido e aparentemente sem qualquer esforço. "O máximo que pude fazer foi manter uma passada de 7:40, que achei de caracol", garante Rafel.Mas imediatamente depois de passar o 27º quilómetro (a corrida tinha 42 quilómetro), sentiu uma coisa horrível logo abaixo da barriga da perna esquerda. "Exactamente como se alguém me tivesse cortado a pele com uma faca", diz. "Consegui agarrar-me a uma árvore e tentei alongar o músculo da perna durante uns dez minutos", explica.A dor aumentou com o esforço físico e, embora diminuísse quando o músculo não estava a ser estirado, ainda dava a sensação de ter sido cortado. Mas desistir da corrida estava fora de cogitação. É que Rafael Escandon nunca tinha desistido numa maratona.Por isso, descreve, coxeou os últimos 15 km e atravessou a meta. Tomou de seguida um duche, engoliu um analgésico forte e saiu com pressa para o aeroporto porque tinha uma reunião de negócios na Europa.Quando o avião aterrou, Escandon levantou-se do lugar e, segundo conta, ficou imediatamente "cego com as dores na perna esquerda. Doía tanto que não conseguia ficar de pé. Ao fim de algum tempo lá conseguiu deslocar-se, "a gemer alto", segundo diz, até à porta do voo de ligação.A transpirar, a sofrer com a diferença de fuso horário e ainda a gemer de dores, levantou as calças para olhar para a perna lesionada. "Fiquei chocado com o que vi", assegura. "O lado médio da perna estava grotescamente raiado de preto arroxeado desde a base da perna até ao tornozelo e à parte superior do pé", descreve Rafael.Descobriu mais tarde que tinha rompido o músculo abaixo da barriga da perna. Durante as semanas seguintes, a dor acordava-o de noite. Não conseguiu correr durante três meses e, mesmo quando retomou o exercício, o máximo que pôde fazer durante seis meses foi uns ligeiros quilómetros numa passadeira."Devia ter ouvido o meu corpo", lamenta. "É que ele não estava só a dizer coisas; estava a gritá-las."Não ir além do limite Há outra interpretação para ??ouvir o corpo". É a preferida de Asker Jeukendrup, director do Laboratório de Desempenho Humano da Universidade de Birmingham, no Reino Unido, e triatleta de alta resistência. Ouvir, segundo Jeukendrup, significa que se deve estar à escuta de "informações preciosas" e se devem pôr de lado "outras informações negativas que possam atravessar-nos o espírito e que são, de facto, irrelevantes". São de ignorar, por exemplo, "alguns resmungos do corpo, alguns sinais de fadiga".O objectivo é levar o corpo até ao limite, mas não além. Mais fácil de dizer do que de fazer, reconhece. E, acrescenta, nem toda a gente o consegue.Aliás, de acordo com o meu treinador, Tom Fleming, não é provável que alguém o consiga fazer. Fleming ganhou a maratona de Nova Iorque duas vezes e tem treinado atletas, desde adolescentes universitários a corredores de ranking nos Estados Unidos. Sabe, dos seus tempos de corredor de fundo, o difícil que é decidir quando se deve abrandar, quando descansar, e quando dar o máximo apesar do desconforto e das dores."Nunca dei ouvidos ao meu corpo", confessa Tom Fleming. "Talvez devesse tê-lo feito. Mas vamos assentar numa coisa: acho que é uma tarefa impossível."Quando estava em treino, explica Fleming, não era capaz de treinar menos nem de se obrigar a andar mais devagar. "Se estivermos mesmo a ouvir o corpo, não conseguimos alcançar o nosso melhor", adianta.Charlie contra Charles Os atletas precisam de alguém de fora - um treinador, se for possível --, que lhes diga quando devem descansar ou forçar o andamento.Outro dos meus colegas do "The New York Times", Charlie Competello, diz que tenta descodificar os sinais que o corpo lhe dá. Mas esforça-se debatendo consigo próprio sobre o que o corpo lhe está a dizer. Competello classifica a sua argumentação interna como um debate entre o Charlie (o Carlinhos) e o Charles (o Carlos). "Eles discutem todas as manhãs, quando me preparo para sair para ir correr", conta."O Charlie diz: ?Estou cansado e não vou sair.? E o Charles afirma: ?Não, nem pensar; tu és capaz. Vai lá para fora e corre?", conta Competello.Normalmente, conta ele, é o Charles que ganha. Por isso ele vai correr e fica contente por isso.Mas as personagens também discutem ao serão acerca de comidas tentadoras, como bolos. O Charles diz: "Nem penses." E o Charlie responde: "Vá lá, tu mereces." E, a essa hora tardia, o Charlie é muito capaz de ganhar. "Por uma razão que desconheço, sou muito melhor pessoa de manhã", graceja o meu amigo Charli Competello.
Exclusivo i, The New York Times
Sem comentários:
Enviar um comentário